Palavras Cruzadas - Capítulo I

Meu troco era pouco, minha mente, um turbilhão de pensamentos que transformavam-se numa poesia meia-boca. Meus amigos gostavam, mas meu senso crítico não era o bastante.
Sentado naquele restaurante, sentia a eletricidade percorrer meu corpo, expulsando-a num ritmo frenético com os pés. Havia aquilo que me incomodava, mais do que minha falta de inspiração poética: minha identidade. Meus últimos dois dias foram ocupados por uma dúvida cruel imposta por aquele par de olhos negros que me encaravam naquele show de sábado a noite. Algo no dono daquele olhar e daquela dança inquietava-me. Esguio e arredio, contrastava com meus passos quase brutos.
Aquela dúvida era a agulha que espetava minha inserção naquela bolha que a sociedade havia criado. O pensamento me fez sorrir: um dia eu estive de fato inserido nessa tal sociedade?
Afastei as ideias com um gole daquele café amargo que me espreitava. De certo modo, sentia que as pessoas ao meu redor escutavam meus pensamentos, julgando-me. Meu pai tinha razão: eu era só um jovem curioso, sem saber o que quer da vida.
A voz de meu pai acompanhou meus pensamentos enquanto lembrava da minha transferência para aquela faculdade federal que haviam me recomendado. Arquitetura. Eu gostava, até. Fazia numa particular razoavelmente reconhecida, mas o dinheiro que ganhava com o trampo da minha tia não era o suficiente.
Naquele instante, sentia meu violão chiar, juntamente com aqueles versos soltos que arrematavam aquela música que havia começado Resoluto, paguei e segui até o metrô. O ar quase repressor da cidade parecia invadir a plataforma da estação. Corri até as portas abertas do vagão, enquanto ouvia o apito melancólico que indicava a partida do trem.
As pessoas imersas na sua própria labuta que preenchiam o metrô tornaram-se o motor para que eu retirasse o violão da bolsa e entoasse o primeiro acorde. Meus olhos fecharam-se, saudando o som da minha voz. A música corria suave, por mim e pelo ambiente.
Por um breve instante, eu havia quebrado a sombra do muro repressor que me acompanhava desde então. Por um breve instante, era eu e a paz, e nada mais.





Senhoras e Senhores: a música do inferno!

Eram oito horas da manhã. Acordei num pulo assim que - talvez por loucura da minha mente - ouvi um barulho que sinalizava uma invasão nas minhas coisas. Olhei ao meu redor, como uma toupeira tentando avistar algo em vão. Tateei o criado-mudo, à procura dos meus óculos. Olhei novamente, mas o quarto parecia vazio. Nenhum ser vivo estranho, nem sinal de passos pelo corredor. É... O meu sono estava pregando peças em mim.
Deitei novamente e fechei os olhos, pronta para aproveitar a 1 hora que me restava debaixo das cobertas.
Eu estava pegando no sono quando um barulho de carro atravessou a janela do meu quarto. Não era simplesmente um barulho de carro. Junto a ele vinha uma música irritante, como aqueles sonzinhos que utilizam pra fazer comercial de produtos, sabe?
Dali uns segundos, a música cessou. O carro parecia ter ido embora e a rua ficou em total silêncio. Será que agora eu poderia dormir?
E novamente o silêncio (e minha esperança) foi quebrado por aquela música proveniente do inferno. O carro tinha parado justamente abaixo da minha janela. É claro, por que não?
Ficou nessas por uns 10 minutos. E o pior: a música me trollava! Ela cessava por alguns segundos, alimentando a esperança de que a porcaria tinha acabado, mas começava de novo!
Eu estava decidida: iria levantar. E adivinha só? Quando eu estava de pé, pronta para deixar o quarto, ouvi o barulho do carro se afastando e levando a música do inferno consigo.
Que palhaçada! Quer saber de uma coisa? Depois dessa, vou passar longe do produto que estava anunciando nessa música!
E assim, saí do quarto pestanejando...